domingo, 3 de maio de 2020

Cabra marcado para morrer

"Cabra marcado para morrer", de Eduardo Coutinho (1984) O pai de todos os documentários no Brasil, "Cabra marcado para morrer" é um filme tão complexo e rico em sua estrutura, que não basta assistir apenas uma única vez. São vários filmes, vários blocos narrativos, misturando ficção, documentário e metalinguagem em um daqueles acontecimentos únicos na história do cinema. No cinema, com estrutura semelhante, eu só me lembro de "E a vida continua", de Abbas Kiarostami, um filme onde os personagens retornam anos depois de um terremoto para a região onde anos atrás filmaram "Onde é a casa do meu amigo?". No ano de 1964, Eduardo Coutinho era integrante do CPC da UNE e do Movimento de Cultura Popular de Pernambuco, e resolveu dirigir um filme ficcional sobre o assassinato do líder da liga Camponesa de Sapé, na Paraíba, João Pedro Teixeira, assassinado por ordem de latifundiários em 1962. Para os papéis principais, Coutinho escalou a própria viúva e filhos de João para repetirem nas telas os seus papéis. Os outros personagens seriam interpretados por camponeses de região. As filmagens acabaram sendo transferidas para Galiléia, Pernambuco por questões de segurança, e apenas Elisabeth interpretou um personagem real. Os outros todos foram escalados entre os camponeses de Galiléia. Com o Golpe de 64, as filmagens foram interrompidas. Integrantes da equipe foram presos, camponeses idem. Apenas 40% das filmagens foram realizadas. Com a anistia em 1981, Coutinho resolveu retomar as filmagens, sem roteiro prévio. Ele queria entrevistar os camponeses que participaram do filme, juntou os que encontrou e exibiu o filme. Diante da alegria de todos em verem imagens de 17 anos atrás, fica a pergunta: aonde está Elisabeth Teixeira? A partir dai, o filme resolve investigar o paradeiro dela e de seus 11 filhos, que tiveram que ser espalhados entre os pais de João, tios e parentes para não serem mortos na época da ditadura. Tão bom rever os créditos e poder ver que amigos do audiovisual fizeram parte da empreitada dessa obra-prima: Nonato Estrela que foi assistente de fotografia na 2a fase do filme, junto de Edgar Moura, que fez a fotografia. Jorge Saldanha o som; Antonio Fontoura na continuidade; Zelito Viana na produção executiva, Alberto Graça na direção de produção. Ver Eduardo Coutinho tão jovem, repleto de energia e daquela sagacidade que conhecemos em seus outros filmes, e pensar na sua morte tão estúpida, deu até tristeza. O filme é uma aula de estrutura narrativa de edição que soube dar uma diretriz a tanto material captado na parte ficcional quanto na parte documental. Traçar o terceiro ato em cima da busca dos filhos de Elisabeth Teixeira é extremamente emocionante. Espelhados por vários estados, e inclusive um morando e estudando medicina em Cuba, revela a importância do ato de sacrifício de uma mãe pelos seus filhos. Um filme obrigatório e uma aula de cinema e de roteiro.

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